sábado, 15 de setembro de 2012

A desglobalização e seus inimigos
Equilibradas sobre o fio da dívida pública, as economias ocidentais pulam de crise em crise. Cúpulas em que se decide a sorte de um país são rotina para os políticos, que, há três anos, assumem um papel de pronto-socorro das finanças. Mas um outro caminho tem sido aberto, quem tem medo da desglobalização?

por Frédéric Lordon


No início, as coisas eram simples: havia a razão, que andava em círculos, e a insanidade. Os racionais estabeleceram que a globalização era a realização da felicidade, e todos aqueles que não tivessem o bom gosto de acreditar nisso deviam ser trancafiados. Por duas décadas, essa “razão” impediu metodicamente qualquer debate, concordando em abrir-se apenas quando sobreveio o espetáculo da maior crise do capitalismo.

Os terríveis efeitos da mega-austeridade europeia se farão sentir realmente na França a partir do primeiro semestre de 2012. No cruzamento entre delírio financeiro, política econômica tutelada pelo mercado e deslocalizações que prosseguem durante a crise, a globalização promete mostrar-se em seus mais ofuscantes trajes: desemprego, precariedade, desigualdade, perda da soberania popular.

A liberalização financeira e o poder acionário, a construção da Europa com base na escolha deliberada de expor a política econômica à disciplina do mercado financeiro, a concorrência livre e leal são todas aquelas coisas intocáveis que devem ser ditas (contra o inferno das que não devem ser ditas) para poder continuar apertando a mão do ministro, ser convidado para falar na televisão, ser consultado pelos partidos (de esquerda e direita) – em uma palavra, ser amado pelas instituições.


Um pesadelo espetacular

Mas eis a crise que arrasa tudo. “Não falar no assunto” era possível até a globalização se transformar num pesadelo espetacular de grande público. Até então se podia aliviar a situação dos pobres por meio de processos exclusivamente internos, cuidando para permanecer dentro do “quadro”, sem questionar nada. As palavras de ordem são reforma tributária (certamente útil) e, acima de tudo, e-du-ca-ção! Seriam educados os “sem oportunidade” – para torná-los “competitivos por cima”. Ah! A educação, a economia do conhecimento, a knowledge-based economy,que é a alegria da Comissão Europeia: desculpa perfeita para responsabilizar os “idiotas” por sua inempregabilidade, sem ter de mencionar as causas estruturais que destroem o emprego.

Mas eis que se torna difícil não falar dos danos ligados às “coisas estruturais”, conhecidas com o nome de globalização, pois eles eram toleráveis enquanto silenciosos, mas de repente tiveram o mau gosto de emergir com estrondo.

Claro que há um esforço em manter alguns dos velhos argumentos, como a tese da “tecnologia”, que imputa à produtividade gerada pela tecnologia, e não à globalização, as perdas de emprego e a desigualdade:1 apenas os bem-educados sabem lidar com o computador, ficando com os empregos reservados aos competentes – quanto aos outros, sinto muito...

Sim, sem dúvida a China acabará desenvolvendo instituições salariais maduras adequadas à solvência de um mercado interno e, de grande exportadora, tornar-se-á nossa grande cliente – mas quando exatamente? Em dez anos? Quinze? Qual é a solução até lá? Ou continuamos no a-paciência-vai-recompensar?

E se, do mesmo modo como a China a 150 euros tornou-se vítima da deslocalização para o Vietnã a 75 euros, a globalização der um salto para o continente africano – ainda inteiramente disponível para se integrar ao sistema! – e quebrar todos os preços? Mais um último bocadinho de paciência de meio século para que a África complete seu percurso?

É claro que o presente desastre perturba os velhos amigos da globalização que se esforçam para encontrar “falhas”. Mas apenas o mínimo, e conforme os eventos em curso permitem, para permanecer no centro de gravidade do discurso legítimo – por exemplo, mostrando-se firmes, pelo menos em palavras, em relação às finanças – e desse modo continuar “na cena”.

Até Lawrence Summers, ex-conselheiro econômico de Barack Obama e papa da desregulamentação da era Clinton (1993-2001), admite que os trabalhadores norte-americanos têm “bons motivos” para acreditar que “o que é bom para a economia global pode não ser bom para eles”...2 As rachaduras do sistema e as repetidas bofetadas da realidade acabaram abrindo brechas, pelas quais os argumentos por muito tempo proibidos conseguem emergir.

A palavra “desglobalização”, cuja paternidade se convencionou atribuir ao economista filipino Walden Bello,3 tomou logicamente o significado de um horizonte político desejável para todas as cóleras sociais que a globalização não cessa de produzir. Porque, no fim das contas, as coisas são muito simples: se foi tão fácil chegar a um acordo para chamar de “globalização” a configuração presente do capitalismo, então também deve ser fácil entender por “desglobalização” a afirmação de um projeto de ruptura com essa ordem.


Debate tenso na esquerda

É precisamente nesse ponto que o debate fica tenso na esquerda. Não poderíamos imaginar membros do conselho científico da Associação pela Tributação das Transações Financeiras e Ação Cidadã (Attac) alarmados com a circulação do tema da desglobalização.4 É de espantar essa contribuição de parte da esquerda crítica – talvez involuntária, mas de qualquer modo objetivamente constituída – às piores distorções da desglobalização.

Embora a configuração fordista do capitalismo pós-guerra tenha tudo da desglobalização, não encontramos ali nem arames farpados, nem postos de vigilância, nem economias hermeticamente fechadas, nem projetos de autossuficiência. O que temos é a terrível enfermidade do pensamento do terceiro excluído, ignorando que pode haver nações e laços entre as nações.

Não consta que o período 1945-1985 tenha ignorado o comércio exterior; sem dúvida o comércio internacional era menos desenvolvido do que hoje. Também não consta que um regime de comércio protecionista trará a guerra que nos promete Pascal Lamy a cada vez que se sugere não sacrificar tudo ao livre-comércio – e, catastrófica convergência retórica, eis que certos altermundialistas decidem declarar que os direitos aduaneiros “alimenta[ria]m a xenofobia e o nacionalismo”,5 ou seja, por acaso concordam com Lamy.

Também não consta que o princípio nacional tenha sido abolido, mesmo no mundo supostamente globalizado, pois – atenção, liberais e altermundialistas! – ainda existem nações! Há a China e os Estados Unidos, que estranhamente nunca veem questionados nem seu nacionalismo nem suas reivindicações de soberania. Eles dariam muita risada se fossem convidados a se fundir em grandes blocos.

Seria excelente, aliás, recordar que o “horror nacional-protecionista” fordista foi uma época, embora certamente imperfeita, de pleno emprego, crescimento (sem consciência ambiental, é verdade) e paz entre os países avançados (embora apenas relativa, mas ainda assim...).

Também não consta que as relações entre as nações devam ser concebidas exclusivamente sob a perspectiva da mercadoria, e ficamos pasmos com a força do detergente liberal para promover tal lavagem dos entendimentos a ponto de fazer esquecer que colocar algum limite à circulação de contêineres e capitais não impede de modo algum a grande circulação de obras, estudantes, artistas, pesquisadores, turistas, como se a circulação mercantil fosse o único medidor do grau de abertura das nações!

Mas podemos dizer que a Attac logo abandonou seu primeiro rótulo de “antiglobalização”, precisamente por se redefinir como “altermundialista”. Talvez esteja aí o divisor de águas teórico, como indica sua recorrente obsessão em ver “um conflito de classes transformado em conflito de nações”. Embora partindo de uma questão profunda, esse enunciado está fadado à inanidade, se acha que pode negar o fato nacional – ou melhor, os fatos – e os antagonismos que quase inevitavelmente se seguem, que não podem ser compreendidos como “guerra” e negação absoluta de relações de cooperação que poderiam ser estabelecidas de outro modo.

A não ser que se queira continuar perseguindo a quimera de uma humanidade completamente reconciliada, teremos de nos habituar à ideia de que a comunidade humana em sentido amplo é necessariamente atravessada por antagonismos, e que alguns deles se estabelecem de acordo com o traçado das nações.

Pode-se observar que os trabalhadores chineses e os trabalhadores franceses estão na mesma relação de antagonismo de classe diante de “seu” capital, mas nem por isso as estruturas da globalização econômica deixam de colocá-los também e objetivamente em uma relação de antagonismo mútuo.

Apelar à solidariedade de classe franco-chinesa procede de um universalismo abstrato que ignora dados estruturais concretos e seu poder de configurar conflitos objetivos. Em vez de construir castelos de ar sobre “essências” (a “essência” do proletariado ou a “essência” da luta de classes) que produzem apenas efeitos improváveis, seria melhor pensar em refazer as estruturas reais que determinam as múltiplas relações entre os diversos grupos sociais, como Marx já criticava nos “jovens hegelianos de esquerda”.

Em alguns países, as estruturas das finanças acionárias e das aposentadorias capitalizadas colocam objetivamente em conflito diversas frações da própria classe trabalhadora: pensionistas (interessados na rentabilidade financeira) contra funcionários (dos quais é extraída a contribuição), aposentados de um centro de produção contra funcionários-acionistas do mesmo grupo etc. É absolutamente inútil pedir a toda essa gente solidariedades de classe abstratas contra as estruturas que as destroem concretamente e configuram objetivamente seus interesses sob relações antagônicas. Mas seria útil refazer as estruturas (destruir as finanças acionárias, promover incessantemente a distribuição) para fazer prevalecer uma gramática de antagonismo sobre outra.

As atuais estruturas de livre-comércio e circulação dos investimentos diretos interditam as solidariedades possíveis entre trabalhadores franceses e chineses. Esse é o paradoxo não percebido pelos “globalizadores”, liberais e altermundialistas. Ao contrário do que muito se diz, um protecionismo razoável e negociado não prejudica os interesses dos trabalhadores dos países emergentes, podendo permitir que eles passem, sem o incentivo de focar tudo na exportação, a regimes de crescimento mais autocentrados, atraindo funcionalmente a extensão e a estabilização dos rendimentos salariais.

Somente quando os trabalhadores desenvolverem solidariedades transversais (transnacionais) é que farão prevalecer a gramática classista sobre a nacionalista. Assim como a “concorrência justa” não passa de um protecionismo disfarçado (e da pior espécie),6 pode ser que, ao contrário do que creem alguns altermundialistas, formas de protecionismo transparentes e racionalmente negociadas tenham boas propriedades cooperativas, gerenciando possibilidades de desenvolvimento autônomo, embora (razoavelmente) interativos, e criando as condições concretas das solidariedades transnacionais de classe.

Mas a questão da desglobalização não se esgota em absoluto na do protecionismo. O problema fundamental é político: o da soberania e de suas circunscrições possíveis7 – que absolutamente não se limitam ao âmbito das atuais nações.

Dado fundamental da vida dos povos, a soberania é ignorada por todos os defensores da globalização, como revela o emaranhado conceito de “governança”. “O problema central é o da governança mundial”, repete Daniel Cohen.8 Não! O problema central é o da constituição de entidades políticas autenticamente soberanas, as únicas dotadas da força capaz de se opor à força do capital. Se houvesse então um único princípio geral para governar o debate sobre a globalização, poderia ser este: não podemos deixar os povos por muito tempo sem soluções de soberania.

A globalização promove a concorrência entre economias de padrões salariais abissalmente diferentes; a permanente ameaça de deslocalização; a restrição acionária impondo rentabilidades financeiras ilimitadas, de modo que sua combinação opera uma compressão constante dos rendimentos salariais; o consequente desenvolvimento do endividamento crônico das famílias; a absoluta licença às finanças para desenvolver operações especulativas desestabilizadoras ou, em falta disso, operações a partir da dívida das famílias (como no caso dos subprimes); a colocação dos poderes públicos na condição de reféns, devendo socorrer instituições financeiras surpreendidas pelas crises recorrentes; a imposição dos custos macroeconômicos dessas crises aos desempregados, de seu custo às finanças públicas sustentadas pelos contribuintes, usuários, funcionários e pensionistas; a espoliação dos cidadãos de qualquer influência sobre a política econômica, agora definida apenas segundo os desejos dos credores internacionais, não importa quanto isso custe ao corpo social; e a entrega da política monetária a uma instituição independente fora do alcance de qualquer controle político.

Daí que se declarar favorável à desglobalização é simplesmente, de maneira geral, declarar não querer nada disso!


Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu'à quand? L'éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d'Agir, Paris, 2008.

Ilustração: Benett