domingo, 27 de março de 2011

A transição trabalho escravo do campo para a cidade cria novos desafios para o seu combate


Marcos A. Pedlowski

    A recente visita do presidente norte-americano Barack Obama acabou tomando o centro da ação da grande mídia brasileira, que ofereceu espaços generosos para um evento que deverá trazer parcos resultados práticos nas relações bilaterais entre os dois países, que não vivem um bom momento em suas relações, tanto no campo econômico como no político. Quem acompanhou a visita de final de semana à cidade do Rio de Janeiro pode inclusive acompanhar pela TV um discurso cujo único efeito prático foi levar ao delírio a seleta platéia presente no Teathro Municipal. Aliás, de prático, a presença de Obama em solo brasileiro serviu apenas para que ele desse a ordem direta de envolvimento militar direto na guerra civil que está ocorrendo na Líbia, o que serviu como um tapa no rosto da diplomacia brasileira, que se absteve na votação da resolução 1973 da ONU que autorizou a ação militar contra o regime do ditador Muamar Kadhafi.
    Essa presença de Barack Obama em terras brasileiras serviu também para empurrar para debaixo do tapete os graves enfrentamentos ocorridos nas obras das hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio que são parte da jóia da coroa do chamado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) sobre o qual se apoiou fortemente a candidatura de Dilma Rousseff, que nos foi apresentada como a mãe desta política do governo Lula. Para quem não leu o pouco que foi publicado sobre o que ocorreu no interior de Rondônia, onde centenas de trabalhadores envolvidos na construção da Hidrelétrica do Jirau, cansados de serem agredidos pelas equipes de segurança por reagirem às péssimas condições de moradia e de alimentação, e de terem seus direitos trabalhistas surrupiados pelas empreiteiras, incendiaram o canteiro de obras. Esta revolta acabou se alastrando para as obras da Hidrelétrica de Santo Antonio, e acabou obrigando a Construtora Camargo Corrêa, responsável pela obra orçada em R$ 11 bilhões, a realizar uma suspensão temporária de suas atividades, e a fazer retornar para suas regiões de origem a maioria dos operários revoltosos.
    Como bem notou o jornalista Jânio de Freitas em uma de suas colunas dominicais, os eventos ocorridos nas obras de Jirau e Santo Antonio mereceram a resposta costumeira do Estado brasileiro, qual seja, o uso de forças policiais para reprimir os trabalhadores, visto que somente apenas após a ocupação dos canteiros de obras por policiais militares e operativos da Força de Segurança Nacional é que uns poucos procuradores do Ministério do Trabalho deram as caras por lá.  Este cenário repressivo tornou evidente a lógica invertida pela qual o Estado opera no Brasil, pois trabalhadores lutando por seus direitos são sempre equalizados à marginais, e não a cidadãos portadores de direitos humanos e de cidadania.
     Mas um elemento bastante peculiar passou quase despercebido na escassa cobertura que foi dada aos graves incidentes ocorridos em Rondônia. Se observarmos o que foi dito sobre o retorno dos trabalhadores aos seus locais de origem, é possível notar que a maioria deles retornou para as regiões mais pobres da região Nordeste.  O interessante é que no destino geográfico dos opérarios removidos dos canteiros de obras das duas hidrelétricas sendo construídas em Rondônia, há uma forte coincidência com as origens corriqueiras de trabalhadores rurais libertados por operações realizadas para reprimir situações de trabalho escravo e degradante.
    Se esta tendência for confirmada, isto representará um desenvolvimento bastante peculiar nas formas pelas quais o chamado trabalho degradante (o que muitas vezes é um subterfúgio para evitar a caracterização da existência de escravidão pura e simples) está ocorrendo no Brasil. As evidências parecem indicar que com a decadência das áreas tradicionalmente marcadas pela monocultura de cana está ocorrendo uma transferência funcional dos antigos trabalhadores rurais para a construção civil.  Esta tendência é acelerada pelo fato de que a construção civil é um dos setores que está mais aquecido na economia brasileira, tendo se tornado um destino preferencial para pessoas que estejam dispostas a trabalhar em funções menos qualificadas que, além disso, estão associados a um alto nível de risco pessoal.
    Neste sentido, ainda me lembro dos argumentos apresentados há algum tempo por uma liderança empresarial do setor sucro-alcooleiro do norte fluminense, que reclamava em um artigo o que ele via como sendo a aplicação discriminatória da legislação trabalhista relativa ao trabalho escravo e degradante. Esta liderança reclamava que existiria uma baixa tolerância com os produtores rurais, já que nas áreas urbanas haveria um número supostamente alto de violações e o número de empresas autuadas seria ínfimo. Ainda que de forma que poderia não ser intencional, este representante estava tendo uma premonição acerca da possível migração do trabalho escravo de áreas rurais para as cidades, principalmente na construção civil. 
    Longe de representar uma atenuação do problema da existência do trabalho escravo, a confirmação dessa faceta urbana apenas aumentará o problema de identificar e punir os responsáveis pela violação dos direitos trabalhistas. Mas talvez não seja surpresa que a coincidência entre o trabalho escravo não fique apenas na origem espacial dos trabalhadores, mas alcance também os empregadores.